O desgoverno paralelo
Quando existe
um determinado governo que quer conduzir uma determinada orientação governativa
e um partido da oposição na Assembleia da República não só faz reprovar medidas
que o governo apresenta segundo a sua orientação, mas também faz aprovar outras
medidas diferentes ou até contrárias à orientação do governo, dir-se-ia que
esse partido da oposição quer fazer de governo paralelo. Mas como governo só há
um, realmente é desgoverno.
Desde que o
governo AD entrou em funções, esta linha do Partido Socialista, sempre
acolitado pelo Chega, revela surpreendente falta de maturidade democrática por
parte da direcção do Partido Socialista. Surpreendente, porque o PS é o partido
que mais anos governou em Portugal desde o regime constitucional de 1976. Por
isso, seria de pensar que a longa e variada experiência teria feito acumular,
no PS e nos seus dirigentes, uma maturidade invejável, sólida e abundante. O
Partido Socialista poderia ser até um altar de sabedoria que jorrasse luz do
Rato até São Bento e muito mais além. Nada disso! Vemo-lo entregue a
consecutivas garotadas, sempre acompanhado pelo Chega, não se percebe bem para
quê. A última foi a gincana do IRS.
Depois de
semanas a discutir com o governo e os partidos da AD ajustes às tabelas do IRS,
a coisa, no final, saldou-se para os contribuintes em poucos euros de benefício
para cada um, variando com o escalão (e outros fatores). Mas o PS, triunfante,
sempre assistido pelo Chega, anuncia e faz publicar “ser responsável por 100%
do choque fiscal deste ano”. O que quer dizer o PS com isto? Quer dizer que uma
parte já era seu, pois estava no Orçamento do Estado para 2024, ainda no tempo
do governo António Costa – digamos 80%. E a outra parte também foi sua, pois,
sempre assessorado pelo Chega, fez chumbar a proposta do governo AD e aprovar a
sua – digamos os restantes 20%. E vão 10% bem medidos. Parabéns! Mas disto, o
que fica como linha política? Pirraça! O PS diz: “O Orçamento é meu, o fisco é
meu, o IRS é meu, os escalões são meus!” Pura pirraça, sempre ajudado pelo
Chega.
O PS pode
reclamar-se desses 100%, mas algo houve que ficou pelo caminho e, além disso, é
preciso compreender bem a história. Esses 100% do PS só aconteceram, porque foi
picado, acicatado, empurrado pelo PSD. Tudo começou no Verão de 2023: o PSD
tomou como posição, na política fiscal para 2024, que a prioridade estava no
IRS e defendeu reduções na respectiva carga até ao 8.º escalão – apenas o 9.º
escalão ficava de fora. O PS chumbou a proposta do PSD, mas, pouco depois, na
proposta de OE 2024, apresentou reduções no IRS até ao 5.º escalão. O PSD votou
a favor desta parte, porque incluía parte da sua proposta – não toda, mas
parte. Chegadas as eleições, a AD assumiu de novo a ideia original do PSD e
propôs completar o quadro com reduções até ao 8.º escalão. E o novo governo AD tinha
a legitimidade para a concretizar, completando o quadro já previsto no OE. Era
basicamente esta a diferença, que gerou tanta celeuma inútil (mas reveladora).
O governo AD,
ao apresentar uma medida fiscal complementar do que já constava no Orçamento de
Estado, abrangia mais os três escalões novos do que os cinco escalões já
contemplados. Para o compreender, como um governo deve fazer, importa ser justo
e rigoroso. Mas, para a oposição, há sempre a tentação da demagogia e da
desconversa. Não é obrigatório ser-se demagogo; mas há quem goste, ou não se
importe.
Foi por onde
se meteu o PS, sempre coadjuvado pelo Chega. Levanta a zaragata, porque “a AD
queria favorecer os mais ricos”, num dos mais patéticos exercícios de demagogia
dos últimos tempos. Deplorável por aqueles que já exerceram funções
ministeriais e não devem comportar-se como mera claque. Como é evidente, os
escalões mais altos são os que pagam IRS pelas taxas mais elevadas e assim
continuaria a ser: a sua taxa contributiva é igual ao dobro ou mais do que os
escalões mais baixos. Mas a função da zaragata é essa mesma: impedir a
compreensão. Assim fez o PS, sempre auxiliado pelo Chega.
O PS ainda
alargou a proposta ao 6.º escalão, o vem confirmar 2023: o que o PS faz bem em
matéria de IRS é preciso ter havido acicate pelo PSD. Mas deixou pelo caminho
os 7.º e 8.º escalões, o que mostra a persistente animosidade deste PS para com
a classe média. Nem é tanto a questão do escalão A, B ou C. É a questão de
termos uma política fiscal abrangente, coesa, inclusiva, ou uma política fiscal
de classe, fracturada, discriminatória. Contribuintes com mais de 27.119€, de 39.791€
ou 51.997€ por ano não são gente? Não são cidadãos como os outros? Pagam IRS a
taxa bem mais elevada do que os escalões inferiores: 37%, 43,5% e 45%. Certo,
porque o imposto é progressivo. Mas, a partir daí, são excluídos dos ajustes de
política fiscal? Porquê? Porquê só para alguns e não para todos? Por pagarem
mais? Esta hostilidade mental do socialismo é terrível. E contrária ao nosso
progresso, crescimento, desenvolvimento. Os socialistas, uma vez mais apoiados
pelo Chega, mostram não conseguir distinguir entre tributar e perseguir.
Não foi só
justiça e equilíbrio que a proposta do PS, sempre viabilizada pelo Chega,
deixou para trás. Foi pior do que isso: deixou para trás estabilidade –
estabilidade política. E deixou para trás mais um bocadinho da viabilidade do
regime constitucional. O caso não é só esta proposta, mas todas as outras que,
intrometendo-se na área do governo, o PS, sempre de mão dada com o Chega, tem
feito aprovar na Assembleia da República: o IRS, o IVA da luz, a abolição das
portagens nas SCUT, etc. O PS, sempre com o Chega como ajudante, está a
comprometer para o futuro a possibilidade de governos minoritários em Portugal.
Olhando ao sistema partidário, as consequências desta derrapagem poderão ser
terríveis.
O PS sabe bem
que, com Soares, Guterres, Sócrates, pôde governar em minoria em diferentes
períodos, com tolerância à esquerda e à direita, por períodos prolongados.
Claro que os governos minoritários não são certos para toda a legislatura e
podem cair a meio. Mas têm de poder governar, não se pondo a oposição na linha
de prosseguir programas legislativos contrários à orientação do governo. Isto
seria consciente e deliberada sabotagem institucional, que mina muito mais do
que apenas o governo. E nem venham, sobretudo PS e Chega, procurar atirar areia
para os olhos. Todos sabemos o que cada um vale e como as maiorias se fazem,
com votos a favor ou contra e abstenções.
Quem não quiser sapar o terreno ao governo, não o faz; quem quer, fá-lo.
Está claro – toda a gente sabe – que, nesta altura, o regime parlamentar
vigente é o do desgoverno paralelo PS/Chega. Eles sabem que nós sabemos que
eles sabem que nós sabemos.
Qual é a
diferença entre os períodos em que o PS governou em minoria e os tempos de
hoje? A diferença é de estadistas. Nesses tempos, havia homens de Estado no
governo e na oposição. Hoje, ainda está para destacar-se um só estadista na
oposição. O PS dá ideia de querer mostrar o pior de que é capaz, sempre
conduzido pelo Chega.
José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão
OBSERVADOR, 7.Junho.2024
Comentários
Enviar um comentário