A Comissão para lamentar, que para nada serve

 

I

nteressa-me pouco esta CPI que marca a estreia pelo Chega no exercício de direitos potestativos para constituir comissões parlamentares de inquérito. Considero-a um exercício de voyeurismo e de intrigalhada político-jornalística. Tem a desconfiança e a má-fé por combustível e as instituições como alvo, sem qualquer ganho para o país. Veremos como acabará. Em nada de útil, certamente.

A CPIGTMZ, acrónimo revelador, que parece eslavo, não passa da barraquinha de feira para o deputado André Ventura alvejar toda a gente – como aprecia – e, em especial, o Presidente da República – especial predileção. O caso é um enredo esticadinho para atingir o Presidente, sabendo-se há muito que sem fundamento, mas fingindo-se que não se sabe. Escarafunchar onde se sabe nada haver sempre alimenta o falatório, simula que se procura, gera atritos, conflitos e mal-entendidos, forja falsos “escândalos” de muitos “aahs!” e outros “oohs!”, levanta e espalha suspeições, difama a granel, para acabar em nada – em suma, a política no pior. Tratar as crianças foi “crime”! Este falso escândalo é que é o verdadeiro escândalo.

O enredo começou a partir do conhecimento de o Presidente da República ter recebido um pedido do filho, residente no Brasil, insinuando-se, a seguir, que o Presidente forçara uma “cunha” pelo sistema abaixo. É sabido que não foi assim. E há dados que mostram serem as gémeas beneficiárias legítimas do tratamento. Mas fundamental é a política de chiqueiro: Marcelo como alvo, um secretário de Estado a fritar no caminho, um tratamento de quatro milhões de euros em favor de “umas brasileiras”, com nacionalidade obtida “em 14 dias” (falso), uma teia de ramificações e compadrio, num caldo de favorecimento e discriminação, com preterição doutras crianças (falso). Um alvo grande, dinheiro de encher o olho, estigmatização de “estrangeiros”, favores de poderosos – este o guião.

A lenda da nacionalidade despachada em 14 dias é reveladora. Debitam-se sentenças, na ignorância dos processos e confundindo os tempos de demora, hoje, com os então vigentes. Em 2019, a duração dos processos das gémeas, que começaram no consulado no Brasil, está dentro dos parâmetros comuns na altura. A ministra da Justiça desmentiu peremptoriamente qualquer anormalidade. E o mesmo fez a Presidente do IRN. Apesar disso, a lenda dos “14 dias” continua a ser repetida, sem ligar a desmentidos e esclarecimentos. Há demasiada má-fé. E é de lamentar que o IRN, mal a patranha começou a circular, não a tenha desmentido logo, sem necessidade de ser chamado à Assembleia – cabe-lhe defender sempre a verdade pública e o seu próprio bom nome.

Também a ideia, que consta da iniciativa do Chega, de que este caso gerou “evidente prejuízo para o erário público” e está “em claro contraponto a outros casos semelhantes que não obtiveram a mesma resposta” é grosseira manipulação. Desde logo, é inquestionável que a doença das gémeas as fazia elegíveis para o tratamento ministrado, a resposta adequada para a sua grave doença – não há qualquer prejuízo para o erário público, quando o SNS cumpre os seus fins. Só teria havido prejuízo, se tivesse havido erro de diagnóstico ou de terapêutica, como por vezes acontece. Aqui, foi a resposta clínica certa, nem mais, nem menos. E quanto à lengalenga de ter havido crianças preteridas, ainda estou para ver uma com quem isso tenha acontecido – aqui, sim, deveria haver inquérito para saber o que teria deixado à porta da burocracia uma criança doente. Vê-se tratar-se de invenção leviana. Os hospitais não têm a despensa com o Zolgensma à espera de quem apareça. A doença é muito rara, o medicamento é de toma única e igualmente muito raro, o que também concorre para o seu alto preço. Presumo que, neste quadro, quando surge um doente com esse diagnóstico e terapêutica, só então o SNS move um processo de aquisição específica – ou seja, um caso não prejudica qualquer outro.

Custa-me ver uma comissão parlamentar, no meu país, a rodopiar em torno de um circo vulgar, pisoteando a verdade, troçando dos deveres públicos, mostrando falta de compaixão, servindo o mais selvagem populismo, abalando as instituições do país e violando a Constituição. E também não percebo o que quer o Ministério Público fazer neste caso. A investigar uma alegada cunha? Mesmo que houvesse uma cunha (que não houve), o Ministério Público, agora, investiga cunhas? Será por perder tempo com cunhas, que não consegue ocupar-se a sério da grossa corrupção?

Quando todo o envolvimento deste caso anda no eixo do que chamamos, em direito penal, “direito de necessidade” ou “estado de necessidade desculpante” (arts. 34.º e 35.º do Código Penal), por que se quer fingir criminalizar actos que nunca o seriam, pois teriam sido ordenados a salvar a vida das gémeas? É assim tão difícil ver a realidade no seu conjunto? Ou só se quer ver o Presidente Marcelo para assestar a besta e o ferir?

 

V

i e ouvi, em directo, no fim de Junho, partes da inenarrável inquirição, durante quatro horas, de Daniela Martins, a mãe das gémeas. Fiquei com indignação e vergonha alheia pelo desempenho de André Ventura e alguns deputados. Estou certo de ser assim com as pessoas de bem, todos os portugueses de bem. Fiquei elucidado sobre a rota da CPI, onde todos os limites seriam rebentados. A desfaçatez com que, mais tarde, se requereu o acesso a correspondência e outras comunicações do Presidente da República e doutros alvos escancara a completa falta de noção dos direitos fundamentais das pessoas. Iliberalismo do mais alto grau, a caminho do autoritarismo. Por isso, é bom que a Assembleia e os deputados guardem o vídeo e seus momentos de velhacaria contra uma mulher, violentada verbalmente na sua condição e dignidade. Será bom poder recordar tudo aquilo que não queremos. Um inquérito não é o mesmo que o interrogatório por cabo-de-esquadra no posto de Rilhafoles.

Desta CPIGTMZ, Comissão Parlamentar de Inquérito – Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma, só quero saber duas coisas:

1.      se as crianças tratadas com o Zolgensma se encontram bem e, graças ao medicamento, têm recuperado (e em que medida), assim como qual o prognóstico para o futuro;

2.      por que é tão caro o medicamento e se, desde 2020, a investigação médica e farmacêutica já produziu outro medicamento mais eficiente e qual o preço, hoje, de uma aplicação de Zolgensma e/ou alternativa.

Não sei se alguém na CPI já se interessou minimamente pelas crianças que sofrem de atrofia muscular espinal e, para o futuro, sobre se casos semelhantes terão tratamento mais acessível quer na resposta clínica, quer no custo. Estas informações interessam-me e gostaria de ter acesso a elas. É o mais importante quando temos, do lado de lá, doentes com graves padecimentos e prognóstico fatal e, do lado de cá, o SNS, que existe para cuidar e tratar. Temos como os tratar? Que prontidão de resposta? Quanto custa?

Sendo as crianças o próprio nome da CPI – “Gémeas Tratadas com o Medicamento Zolgensma” – não é aceitável que ninguém cuide das crianças, com solicitude, e a comissão parlamentar sirva para interrogatórios intimidatórios, ao serviço da politiquice mais reles e de propósitos inconfessados.

 

H

á outro problema, porém, de que me dei conta na semana passada e que é sério e grave. A comissão é um golpe de Estado: quer pôr o Presidente da República a responder politicamente ao Parlamento – e a verdade é que não tem de o fazer, em caso nenhum. Num regime constitucional, o que um órgão de soberania não pode fazer é porque não pode, nem deve fazê-lo. O golpe de Estado está em transformar um regime semipresidencialista num regime parlamentarista, em que o Parlamento, que exige contas ao Governo, quer também exigi-las ao Presidente da República, em violação da separação de poderes. Isto é proibido. Isto é intolerável.

Nesta semana, porque viajava de carro, em dois dias sucessivos, fui ouvindo em directo parte das audições de Fernando Frutuoso de Melo e Maria João Ruela, chefe e assessora da Casa Civil do Presidente da República. E dei-me conta, pelo tom do deputado André Ventura, de que agia como se a Presidência devesse satisfações à Assembleia, que o quer e poderia julgar. Foi evidente, em diferentes momentos, que as crianças são o joguete instrumental para o líder do Chega chegar onde quer: a pele de Marcelo Rebelo de Sousa. Terá de escolher outro desporto, que, por este, não o pode fazer.

O Presidente da República é o órgão supremo do Estado que, politicamente, presta contas directamente a todos os portugueses. O Governo, sim, que resulta de investidura parlamentar, presta contas ao Parlamento. O Presidente, não.

A Constituição não deixa qualquer dúvida. A forma como define o Presidente da República, órgão que garante “o regular funcionamento das instituições democráticas” (art.º 120.º), coloca-o acima de todas elas. Os deputados têm poderes de “fazer perguntas ao Governo sobre quaisquer actos deste ou da Administração Pública” e para “requerer e obter do Governo ou dos órgãos de qualquer entidade pública os elementos, informações e publicações oficiais” (art.º 156.º, 1 d) e e)) – mas não têm estes poderes sobre o Presidente da República. Lendo os art.ºs 161.º, 162.º e 163.º, referentes à competência da Assembleia da República, em matéria política e legislativa, de fiscalização e quanto a outros órgãos, não há sombra de qualquer competência parlamentar quanto ao Presidente da República, salvo testemunhar a sua tomada de posse, dar assentimento a que se ausente do território nacional e promover o processo de acusação por crimes no exercício das suas funções (outro circo por que André Ventura já se aventurou, estatelando-se) – e, ao contrário, são várias as competências parlamentares quanto ao Governo, que de si depende, e seus membros. O art.º 178.º, quanto a comissões parlamentares de inquérito, não abre qualquer excepção ao estatuto constitucional do Presidente. E os art.ºs 190.º e 191.º estipulam a responsabilidade do Governo e dos seus membros perante a Assembleia da República, não havendo, como todos bem sabem, qualquer norma similar para o Presidente da República.

O Regimento da Assembleia da República acolhe este quadro constitucional e, no art.º 233.º, 1, estabelece: “Os inquéritos parlamentares destinam-se a averiguar do cumprimento da Constituição e das leis e a apreciar os actos do Governo e da Administração.” Clarinho, clarinho. Este perímetro está certo, razão por que um inquérito parlamentar não pode extravasar estes limites (Governo e Administração), invadindo a Presidência da República ou examinando actos do Presidente. Se o fizer, comete um “golpe de Estado”: subverte o sistema de governo e gera balbúrdia institucional de consequências imprevisíveis.

 

O

lhemos, então, o artigo 6.º, n.º 2 do Regimento desta CPIGTMZ: “Gozam da prerrogativa de depor por escrito, se o preferirem, o Presidente da República e os ex-Presidentes da República por factos de que tiveram conhecimento durante o exercício das suas funções e por causa delas.”

Esta norma ofende o Regimento da Assembleia (ao violar o perímetro definido para as CPI) e choca de frente com a Constituição. O Presidente da República, conforme à Constituição, não é que responda oralmente ou por escrito: não responde. Não pode ser perguntado. Ponto final.

É altura de olhar a parte do título do Despacho que institui a comissão de inquérito, copiando da iniciativa do Chega: “verificação da legalidade e da conduta dos responsáveis políticos alegadamente envolvidos”. E também parte do seu objectivo, igualmente copiado do Chega: “independentemente dos decisores políticos envolvidos, todas as responsabilidades no favorecimento”. Fica a dúvida: os eufemismos “responsáveis políticos alegadamente envolvidos” e “decisores políticos envolvidos” são uma forma enviesada de colocar o Presidente da República como alvo da CPI? Não pode ser. O Chega tem o direito potestativo de abrir o inquérito parlamentar, mas não tem o direito potestativo de violar a Constituição. Ninguém tem. E tudo tem de ser feito e interpretado em conformidade com a Constituição.

Esta irregularidade é muito grave e deve ser atalhada de imediato. Em caso algum, pode o Presidente da República ser colocado em posição de dependência ou de subordinação da Assembleia da República. É o Presidente que preside à República, não pode ser comandado ou julgado pela Assembleia. Pode ser essa a ideia do líder do Chega. Mas tem de ser uma ideia só dele, não pode ser uma ideia do Parlamento, nem de uma comissão parlamentar. A Assembleia da República não só deve obediência à Constituição, como deve dar o exemplo impecável e fazer pedagogia geral de democracia e respeito pelo Estado de direito.

O maior titular desta responsabilidade é a Assembleia da República, onde se sentam os representantes dos cidadãos, que, sempre que necessário, como aqui sucede, têm de levantar-se para defender a democracia constitucional, a democracia séria, a democracia soberana e separar a política da chicana, defendendo-a da degradação contínua. Esta comissão parlamentar é pior do que o pior que já tínhamos visto. Em rigor, pensando em objectivos legítimos, não serve para coisa nenhuma.


José Ribeiro e Castro
Advogado e cidadão

OBSERVADOR, 29.Julho.2024


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