Estamos ao lado da Ucrânia


A relação que temos com a Embaixada da Ucrânia é, para nós, uma relação muito preciosa. É muito anterior à guerra. Mas a nossa relação, estabelecida por protocolo em 2017, não sendo baseada na guerra, obviamente que ficou mais forte com a guerra. Aqueles que são amigos e não se traem ficam com a amizade mais sólida e mais forte, uma amizade de aço, temperada nos momentos de mais dura provação.

Portanto, muito obrigado, Senhora Embaixadora, por ter activado esta parceria para promovermos esta reflexão sobre o decisivo papel da Ucrânia para a segurança europeia. Uma reflexão muito importante numa altura de tantos movimentos promissores no quadro da União Europeia e da NATO. Aqui, está em sua casa, Senhora Embaixadora. Estará sempre em sua casa. Tal como, junto ao Muro de Berlim, em 1963 disse o Presidente Kennedy – Ich bin ein Berliner! – também nós aqui repetimos: Nós somos ucranianos! Somos todos ucranianos! Vsi my ukrayintsi

Na abertura desta sessão, quero partilhar quatro ideias, quatro preocupações, em que, desde o início da agressão russa, o meu espírito sempre se foca de cada vez que reflicto sobre esta crise perigosíssima, de que não conseguimos ver o fim.

A primeira é esta: quem é o inimigo da Rússia? Quem é que Putin quer confrontar e vencer? É a Ucrânia? Será a NATO? Ou será antes União Europeia? Será o Ocidente? Todos estes certamente. Mas o verdadeiro inimigo da Rússia, aquele que Putin confronta e verdadeiramente quer vergar é o sistema das Nações Unidas. Quando Vladimir Putin fala repetidamente em instalar uma “nova ordem internacional”, é isto que nos está a dizer. Quer destruir o sistema das Nações Unidas, para instalar o seu sistema. É um projecto extremamente perigoso e é este projecto que explica e justifica todas as ousadias extremamente perigosas que o Kremlin tem vindo a cometer. A aventura temerária contra a Ucrânia, se triunfasse, instalaria, por si, essa “nova ordem”. Nunca mais haveria liberdade, segurança e paz no mundo. O direito de conquista territorial estaria de volta e voltaríamos ao direito internacional do tempo de Napoleão, ou de Hitler e Estaline. É preciso que todos os Estados do mundo, que todos os povos, estejam conscientes de que somos nós todos que estamos em causa e em perigo. É essencial levantarmo-nos em afirmação e em defesa do sistema das Nações Unidas e da resolução pacífica de todos os conflitos.

A segunda preocupação é esta: por que motivo não nos defendemos mais vigorosamente? Nas primeiras semanas após a invasão, ainda houve manifestações de cidadania um pouco por todo o lado. Hoje, desapareceram. Há muito tempo que desapareceram. É um paradoxo: a crise prolongou-se, tornou-se mais perigosa e nós deitámo-nos a dormir… Não pode ser assim! É indispensável sairmos à rua. Nós, a que não nos caem bombas em cima da cabeça, que não nos ferem ou matam nas ruas, que não nos destroem casas e hospitais, é indispensável que nos manifestemos junto às embaixadas russas – a manifestar o nosso repúdio e a exigir a retirada –, em frente das embaixadas da China – a condenar a ambiguidade e a exigir clareza e seriedade pelos direitos humanos –, diante das embaixadas do Brasil – a repudiar a duplicidade e a exigir solidariedade com a Ucrânia e o povo ucraniano. O que é que fazem os nossos partidos políticos? Estão todos a dormir? O que fazem os nossos líderes? Desistiram de nos conduzir para a vitória e para a paz? Já se esqueceram de que o coro da opinião pública, a expressão directa da indignação popular podem ter efeitos poderosos de transformação? Desistira de combater e de nos liderar nesse combate? Negligenciam o perigo em que todos estamos? Ou será que estão à espera que comecemos a gritar, quando já for demasiado tarde? Por que não se mobilizam os nossos líderes nacionais e europeus e não nos mobilizam também para ocupar as ruas da Europa com a causa da Paz e do Direito?

A terceira preocupação tem a ver com a Rússia: nós não queremos destruir a Rússia, nós queremos viver em paz com a Rússia. Era assim, antes de 2022; será assim, depois desta guerra acabar. Nós queremos ter relações pacíficas e abertas com a Rússia para todo o futuro que conseguimos antever para além da guerra actual. Queremos que seja assim com a Ucrânia, e com a Polónia, a Lituânia, a Estónia, a Letónia, a Finlândia. Relações pacíficas, fecundas, de progresso, através de intensas trocas comerciais, científicas, culturais, desportivas. Temos de o dizer várias vezes todos os meses, para que a mensagem chegue também ao interior da Rússia. É preciso que os paranoicos do Kremlin fiquem a falar sozinhos: eles fazem a guerra, nós só queremos a paz. Nós não queremos a guerra, só o Kremlin quer a guerra. O único ponto essencial é que as tropas russas se retirem do solo ucraniano, respeitem a soberania, cumpram o direito internacional.

Enfim, a quarta ideia prende-se com o Conselho de Segurança, que tem a principal responsabilidade na gestão desta crise, de que já se ocupou várias vezes, sem nunca a solucionar, apesar das descaradas violações da Carta das Nações Unidas por parte da Federação Russa. É possível que, face à natureza desta crise, especialmente aguda, provocada por um membro permanente do Conselho de Segurança, este não esteja a reunir no sítio certo. Fui verificar à Carta das Nações Unidas, se era possível que o Conselho reunisse em Kyiv. É possível. Diz o artigo 28, parágrafo 3: «Article 28: - The Security Council may hold meetings at such places other than the seat of the Organization as in its judgment will best facilitate its work.» É uma possibilidade aberta que é preciso aproveitar. Que outro lugar existe mais adequado para discutir a invasão ilegal da Ucrânia, do que a própria capital da Ucrânia, alvo de numerosos ataques? Que lugar melhor existe para apreciar um plano de paz para a Ucrânia, do que a própria capital do país de que a Crimeia foi ocupada há 10 anos e que é objecto de grave agressão desde há quase dois anos e meio? É preciso começar. Em minha opinião, é preciso pôr esta ideia em cima da mesa e fazê-la rolar. Não será fácil certamente fazê-la adoptar, mas o simples facto de a pôr em movimento produzirá certamente efeitos positivos e favoráveis. Será muito difícil explicar por que motivo se recusa a realização reuniões do Conselho de Segurança em Kyiv sobre a agenda da crise provocada pela invasão russa e o rasto de mortes, violações, torturas e destruições que tem deixado.

Esta parece-me uma agenda simples e certeira. Primeiro, mostrar, provar e sublinhar que o inimigo do Kremlin é o sistema das Nações Unidas. Segundo, voltar a rua das nossas cidades livres de guerra, para mostrar a nossa solidariedade com os ucranianos e exigir aos russos a paz e às autoridades chinesas, brasileiras ou outras a decência. Terceiro, depormos repetidamente a nossa convicção e determinação de relações pacíficas com a Rússia e amigas com os russos, para todo o pós-guerra. Quarto, levarmos o Conselho de Segurança a reunir, nos termos do artigo 28 (3) da Carta, ali, onde faz mesmo falta que reúna: em Kyiv. Where else?


José Ribeiro e Castro

Discurso no Palácio da Independência,
3.Julho.2024



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